Luciano Spinelli [email protected]
graffiti TRENSURB 2004O texto abaixo é parte integrante de uma pesquisa sobre o grafite e suas formas alternativas de comunicação e expressão visual em alguns territórios das cidades de Porto Alegre e Paris. Ela focaliza o estilo de vida e a visão de mundo de uma rede social de grafiteiros, analisando as formas como eles se apropriam de certos espaços público. Observa-se a relevância do grafite, suas motivações expressivas, e quais propostas estéticas este contempla. Para responder a estas questões adota-se a investigação de alguns grafiteiros no seu viver urbano, com suas intencionalidades expostas através da grafitagem e nas possibilidades comunicativas que empregam frente à subjetividade do morador da cidade. A crença de que o grafite se traduz como parte do fenômeno de poluição visual que afeta as grandes metrópoles é afastada por esta pesquisa, que aponta para uma inclusão do grafite na complexa linguagem urbana pós-moderna. Ele integra as formas contemporâneas de comunicação social, sendo herdeiro legítimo de uma cultura visual de massa, passível de leitura e de compreensão subjetiva para quem o observa, interpreta e lhe atribui significado.
Nas paginas seguintes, grafite é pensado como forma de comunicação ao possibilitar a interação do grafiteiro: com a estética de uma cidade ventríloqua; com sua tribo urbana (Maffesoli 1998) e com os habitantes. Nesse sentido, a intervenção visual, seja através de um desenho, de uma palavra ou de uma sigla, representa um signo em diálogo com o entorno que cerca a inscrição na parede. No caso de um desenho, sua significação é dada de forma subjetiva pela sociedade em geral. Já na tribo que faz a grafitagem, ele recebe, além da significação artística, a personificação de uma pessoa ou grupo que passou por ali.
Na leitura de uma comunicação urbana estão em jogo subjetividades de quem se interessa por ela, relativas a fatores assim enumerados por Massimo Canevacci:
Na decodificação da mensagem existe sempre um lado criativo, um critério subjetivo. Ela é interpretada segundo a formação particular do pesquisador, sua biografia intelectual e política, seus gostos e emoções, ou segundo o acaso. A tradução da mensagem urbana é sempre uma traição (CANEVACCI, 1993:37).
Em se tratando de uma palavra ou sigla, a escritura na parede em geral não é decifrada pela população de forma plena, porque são usadas fontes tipográficas próprias a cada grupo em uma estilização das letras do abecedário. Essas fontes marcam a identidade de quem escreve, sendo que cada grafiteiro e pichador tem sua própria tag, assinatura que pode ser complementada por desenhos ou siglas. Em geral, os grafiteiros firmam suas obras com a tag e os pichadores fazem da tag sua obra, que é complementada com referências à crew e/ou ao bairro de residência. Na rede que atua na pintura urbana e tem por hábito a leitura do que é expresso nas paredes, os signos inscritos têm outra significação.
Ao observar um grafite, é comum encontrar a quem a obra foi dedicada, a tag da pessoa que a fez, o nome do crew a que essa pessoa( está ligada, a região da cidade em que vive, além do que está expresso no desenho ou na palavra grafitada. Quando se trata de um piche, as mesmas informações são encontráveis, com a diferença de que desenho é substituído pelo nome do grupo ao qual pertence o pichador. Não está na forma como a palavra foi escrita, mas, sim, na intencionalidade, uma diferença entre os grupos que atuam na pintura da cidade. Pode-se ter um piche no estilo grapicho, com o uso de duas ou mais cores e dimensões, bem como um grafite com essas mesmas características. Eles diferem na intencionalidade de quem confecciona a obra, se tem como intuito a sabotagem ou a estetização, se, por exemplo, a parede foi liberada para esse fim ou se a marquise foi escalada durante a madrugada.
As expressões comunicativas do grafite se relacionam com muitas dimensões sociais, em instâncias culturais também ecléticas, o que marca uma diversidade interpretativa. Em um estudo com grafiteiros na Cidade do México, Tania Cruz considera o grafite como uma forma de comunicação, com a seguinte justificativa:
É uma forma de comunicação porque mediante uma gíria e símbolos lingüísticos específicos permite interagir socialmente com: 1) o espaço urbano; 2) a comunidade de grafiteiros; 3) a comunidade em geral (CRUZ, 2004:198).
O grafite, por ser feito sobre um suporte urbano repleto de signos da comunicação de massa, está em inevitável diálogo com todos esses signos e com o entorno. São cartazes, placas de trânsito, placas de pedestre, adesivos, painéis luminosos, outdoors, bus-doors, e uma infinidade de dizeres e imagens que surgem freneticamente no percorrer uma grande avenida em Porto Alegre ou Paris. O que alguns consideram "poluição visual" pode ser visto como uma grande diversidade de signos lingüísticos em uma subliminar comunicação do espaço urbano - uma "cidade polifônica", diria Canevacci.
A cidade polifônica significa que a cidade em geral e a comunicação urbana em particular comparam-se a um coro que canta com uma multiplicidade de outras vozes, que isolam-se ou se contrastam (CANEVACCI, 1993:17).
O grafite constitui uma dessas vozes e, por isso, deve ser cartografado na estética urbana para que o diálogo com o entorno seja audível. Se inserido em uma galeria de arte, o grafite é mutilado em seu poder de comunicação quando limitado a conter toda sua significação em si mesmo. Na situação urbana esse deslocamento é impensável e irreal, pois, quando a paisagem urbana cede espaço a essa intervenção visual, há uma simbiose de signos que geram um todo reinterpretável.
Pensando em uma foto, um plano fechado de um grafite não é fidedigno ao seu poder de comunicação. Esse grafite deve ser lido e entendido como um detalhe de um todo que é a paisagem citadina, em que:
O detalhe é aproximado por meio de uma precedente aproximação ao seu inteiro; percebe-se a forma do detalhe até que esta fique em relação perceptível com o seu inteiro (CALABRESE, 1987:86).
Observando o grafite como um "detalhe da paisagem urbana", sua leitura é condicionada ao seu entorno, uma vez que esse grafite está impregnado em uma parede, em uma rua, em um bairro, em uma cidade. Deslocar física e temporalmente esse objeto fragmenta sua relação com o todo no qual foi concebido, minando a sua significação. O desenho grafitado só se torna um grafite quando em relação com a cidade.
Ser capaz de ler a fonte tipográfica é requisito para tentar desvendar o que se escreve em um grafite ou piche, mas não é o único requisito. Entender as abreviaturas pode ser uma tarefa impossível se o leitor não está inserido na rede de grafiteiros, uma vez que elas são mensagens codificadas, coligadas simultaneamente a outras informações em um grafite. O emissor da mensagem visual pensa no diálogo simultâneo com a sociedade em geral e com os que dominam o seu código lingüístico.
No piche, isso garante o anonimato frente à polícia e à sociedade, ao mesmo tempo em que possibilita o diálogo com sua rede social. Trata-se de uma "identidade clandestina" (Cruz 2004:199) forjada pelo pichador na tribo que reconhece a assinatura e a significa. Essa forma de comunicação em instâncias diferenciadas passa pela articulação simultânea de dois códigos. Um escrito por extenso, o outro plástico e visual. O primeiro comunica objetivamente, o segundo subjetivamente. Quanto à decodificação de uma mensagem, Umberto Eco, entende que o:
Elemento fundamental dessa cadeia é a existência de um Código, comum tanto à Fonte quanto ao Destinatário. Um Código é um sistema de possibilidades prefixadas e só com base no código estamos aptos a determinar se os elementos da mensagem são intencionais (desejados pela Fonte) ou conseqüência do Ruído (ECO, 1984:169).
O código visual que dominam os grafiteiros é mais completo para entender um grafite em relação ao da sociedade. Assim, as instâncias comunicativas que circundam a mensagem plástica são decodificadas de forma diferente por eles, em um processo efetivo de comunicação entre emissor e receptor. Essas "informações complementares", descritas mais adiante, são relevantes para quem observa a obra a partir do código da tribo que grafita, e em geral, passam despercebidas pela sociedade que também vê o grafite, mas o entende de forma diferente.
O grafite comunica-se com a sociedade que habita a cidade, por vezes de forma subliminar, ao participar da paisagem urbana. O viver a cidade passa por sua estética marcada por conotações subjetivas, em um diálogo íntimo e individual entre o sujeito e o meio pelo qual é circundado. O grafite, percebido como um signo da cidade, exposto a todos de forma autoritária por surgir unicamente pela vontade de quem o produz, se insere no processo de diálogo com o "urbanóide", dialogo este que se estabelece de duas maneiras: a primeira, ao constituir uma mensagem legível, proposta por alguém, e compreendida em sua totalidade pelo receptor; a segunda, ao caracterizar antes a existência de seu proponente, a marca do autor ali presente, visível, mesmo que ilegível.
Essa leitura é dotada de um nível variável de ruído, através do qual a mensagem é munida de uma relação intersubjetiva com seu leitor. Para a rede que grafita, a leitura é feita diferentemente do que para o desavisado morador apressado, possibilitando as diversas e esperadas compreensões de um produto visual. O certo é que existe o estabelecimento de uma "cadeia comunicativa" entre o grafite, o grafiteiro, o morador da cidade e o entorno.
A cadeia comunicativa pressupõe uma Fonte (ou Emissor) que, por meio de um Transmissor, emite um Sinal através de um Canal. O Sinal, através de um Receptor, é transformado em Mensagem para uso do Destinatário. Essa cadeia normal de comunicação prevê obviamente a presença de um Ruído ao longo do Canal (ECO, 1984:168).
O nível de ruído é pensado pelo grafiteiro. Inserir desenhos caracteriza uma significação plástica acessível a qualquer um que aprecie a obra. A tag, assinatura do autor, semelhante à rubrica do pintor em um quadro, é de importância vital para perpetuar sua recorrência. Delicadamente escondida, ela está sempre presente. Se bem que, por vezes, o que está grafitado é a própria assinatura, que, com o universo de cores, níveis dimensionais, afrescos e desenhos mantém um diálogo subjetivo, através do artístico, com a população. As dedicatórias e referências ao bairro aparecem como informações codificadas por abreviaturas em uma grafia cursiva. Por assim dizer, o grafite como obra, apresenta uma diversidade de possibilidades compreensivas que dependem de referenciais próprios da cultura de cada pessoa que se dispõe a observá-lo.
No que tange ao entorno, à rua da cidade, o grafite se agrega em um entrelaçamento de re-significação. Ele deixa de ser obra em si mesmo, até porque não é pensado para isso, e funde-se nos níveis significativos da paisagem urbana. O ruído agora não está mais nas diferentes linguagens, e, sim, nas folhas da árvore que se debruçam sobre a parede, nos fungos que absorveram a tinta perto do chão, no cartaz colado sobre o muro grafitado, nas ranhuras da porta que foi incorporada ao desenho. O próprio movimento do passante, que vê o grafite de forma rápida, já acusa uma leitura do que salta aos olhos. O ritmo da cidade, o semáforo, a parada de ônibus, são formas de regrar tempos diferentes de exposição do morador frente a paisagem em que se insere o grafite. E não é de se esperar que ele esteja especialmente atento, que venha a caçar e decifrar mensagens oferecidas pela paisagem urbana.
Quando se trata de entender uma pichação, o uso de um código lingüístico secreto, que não é compartilhado pela população em geral devido a sua grafia, torna praticamente impossível ler os nomes e siglas expostos nas paredes da cidade. Excluindo grafiteiros, pichadores e curiosos em geral pela escrita urbana, a leitura compreensiva desses signos passa despercebida, sendo eles vistos, mas não entendidos. É de se pensar que a sua significação para a população não seja desejada por parte do proponente da obra, sendo esta importante apenas para a tribo que grafita e confere valor a tal ousadia.
No piche é feita a marca registrada de alguém, a tag, a representação de si mesmo. Nele,
O que o escritor anônimo quer comunicar não são palavras, mas, sim, a sua presença fantasmática, que pode atingir o alvo quando e onde queira, nas cornijas mais altas, nos edifícios mais elegantes, nas perspectivas mais vertiginosas. Porque o sentido do discurso consiste tão-somente em atestar a existência anônima, a abstrata presença das pichações árabe-góticas (CANEVACCI 1993:183).
Antes de comunicar uma mensagem, a exposição da intervenção visual caracteriza seu autor, não importa com que técnica visual. É a marca de uma pessoa, de um grupo, da existência de alguém, de muitos desconhecidos que são vistos por toda a cidade. O fato de já serem vistos é suficiente para que continuem as exposições de suas marcas na apropriação do ambiente em que vivem.
Esse ensaio não pretende ser conclusivo, e sim, integrante de um processo compreensivo desse complexo objeto de estudo. Grafite e grafiteiros são inevitavelmente, proposições generalistas, através das quais foram abarcadas nuances muito diversas da expressão visual dos moradores nas paredes da cidade. Quanto ao grafite como forma de comunicação visual, reitero uma frase escrita páginas acima. "O desenho grafitado só se torna um grafite quando em relação com a cidade", esse quesito indispensável ao ato da grafitagem, pode ser considerado o fator de coesão na tribo estudada, único e indispensável. Público, o grafite é da rua. O ser visto nas paredes da cidade, insere a tag, a marca, a pessoa, no imaginário de quem lê estas expressões urbanas.
CALABRESE, Omar. 1987. A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70.
CANEVACCI, Massimo. 1993. A Cidade Polifônica. São Paulo: Livros Studio Nobel Ltda.
_______ . 2001. Antropologia da Comunicação Visual. Rio de Janeiro: DP&A.
CRUZ, Tania Salazar: 2004. "Grafiteros: Arte Callejero en la Ciudad de México". In: Desacatos Revista de Antropología Social. n. 14, pp. 197-226.
ECO, Umberto. 1984. Viagem na Irrealidade Cotidiana. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira.
MAFFESOLI, Michel. 1998. O Tempo das Tribos. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.
This article first appeared in the revue Sociétés 2007/2 (n° 96)
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